Eu cresci em agência de publicidade. Meu pai foi vendedor de outdoor e me levava pra lá e pra cá. Aos poucos, fui me enturmando mais com o pessoal da criação do que com os demais setores das agências. Nessa época era tudo paste up e letra set, um processo manual de montagem de layout, no qual os criativos desenhavam, recortavam e decalcavam os elementos textuais e gráficos para compor uma peça publicitária.
Numa tarde no começo dos anos 1990, ainda sem saber que me tornaria publicitário, vi uma exibição ao vivo do Corel. Acho que não tinha nem número, era apenas Corel, a primeira edição do software. Num pequeno bureau criativo, num dos quartos de uma casa, um amigo do meu pai brincava com a imagem de um lápis da Coca-Cola, deformando-o na altura e na largura, apenas ao puxar suas extremidades, algo surreal na época. Na mesma página, dentro da tela do computador, fazia retângulos, estrelas e círculos, trocava suas cores em poucos segundos e os apagava num clique. A palavra deletar nem era usada ainda. Aquilo foi assustador. Seria o fim de todos aqueles meus amigos que faziam paste up? Agora qualquer um poderia criar materiais publicitários, trabalho antes reservado para quem tinha não somente, mas também mãos talentosas?
Algum tempo depois, eu já trabalhava em agência, vieram as câmeras digitais. Antes disso, as fotos eram feitas em cromo, com máquinas específicas e caras. O cromo é, ou era, como um slide, como um negativo dos filmes fotográficos só que positivo, com alta definição e precisão de cores. Depois de produzido, o cromo era escaneado e podia ser manipulado digitalmente. Por ser um material caro, o resultado final de uma sessão fotográfica eram poucos cromos. Às vezes apenas 2 ou 3 para escolhermos. Chegaram as câmeras digitais, muito mais baratas e a imagem já saía digitalizada. Isso possibilitou que todo mundo fizesse dezenas, centenas de fotos, a baixo custo. Seria o fim dos fotógrafos? Qualquer um poderia agora produzir imagens de alta qualidade estética?
Depois veio a internet. Os primeiros sites. O e-mail marketing. As redes sociais que viraram mídias sociais ao se monetizarem. Os algoritmos. As startups da performance/comunicação. Seria o fim das grandes ideias, dos grandes conceitos, dando lugar às métricas como impressão, alcance, engajamento? A criatividade estaria com os dias contados, pois só o que importaria seriam os números, os KPIs? Só precisaríamos entender como os algoritmos funcionam para ter sucesso?
Agora a Inteligência Artificial chegou com tudo. Está ao nosso alcance, no ChatGPT, nos softwares de edição de imagem e automação de marketing, entre outras aplicações. Será o fim da inteligência natural? Os Wachowski estavam totalmente certos e as máquinas vão dominar o mundo? Redatores, roteiristas, diretores de arte, designers, planejadores estão com os dias contados? Os fotógrafos vão ser extintos novamente?
A imperícia e a seleção não natural
Eu acredito que todas essas transformações causam dois efeitos. O primeiro, pela democratização da tecnologia, é uma avalanche de pseudoespecialistas. O Corel, constantemente pirateado, trouxe um tsunami de mau gosto para a publicidade. Todo mundo munido de um PC virou um publicitário. E o mundo nunca viu tantas logomarcas horríveis, folders deprimentes e outdoors ilegíveis.
O mesmo aconteceu com as câmeras digitais. Algumas empresas acharam que poderiam substituir os fotógrafos profissionais comprando uma câmera para ser pilotada pelo estagiário de qualquer setor. Vimos uma enxurrada de imagens malfeitas, mal-iluminadas, mostrando os piores ângulos de produtos, lugares e pessoas. Adivinha o que aconteceu quando a internet chegou? Anúncios que não comunicavam nada, muitas vezes diagramados no Corel usando aquelas imagens feitas com as câmeras digitais pilotadas por não fotógrafos, invadiram os slots de publicidade da web.
Isso leva ao segundo efeito dessas grandes transformações tecnológicas: a seleção, nem tão natural assim. Os clientes passaram a ter uma dificuldade muito maior para selecionar seus parceiros. São tantas as opções que ficou difícil colocar na balança para escolher. Quem tinha os dois olhos no custo, muitas vezes, caiu na armadilha de fornecedores não preparados. Mas o tempo foi peneirando as competências e foi ficando mais fácil saber quem realmente usava as ferramentas para gerar valor e quem apenas surfava a onda da oportunidade, sem critério nem criatividade.
O mesmo está acontecendo com a IA. A tendência não sai das notícias, das redes sociais e dos podcasts. Provavelmente é a maior revolução pela qual vamos passar. A hiperconectividade gera análises e possibilidades exponenciais inimagináveis. Mas como aplicar isso ao nosso negócio para gerar valor aos clientes? Se todo mundo tem acesso, ela é o denominador comum, e será necessária uma série de habilidades para usá-la como diferencial, seja olhando pra dentro da agência ou pro resultado esperado pelos nossos clientes.
Na prática, é só o começo
Na Ideatore estamos tratando a IA com respeito. Criando regras para usá-la com moderação, sempre tomando o cuidado para que o resultado das pesquisas seja o início do nosso trabalho, e não o produto final. Estamos usando a IA para agilizar processos que demorariam muito tempo, demandariam muitas fontes e muitas pessoas.
Vamos a alguns exemplos práticos. Ao criar o nome para um empreendimento imobiliário, usamos o prompt para nos ajudar a conhecer lugares do mundo com o perfil do nosso produto, mas nunca vamos pedir para o prompt criar o nome e vender isso para o cliente como fruto do nosso trabalho. Com base nessa lista de cidades, bairros e outros empreendimentos, iniciamos as reuniões de brainstorming. Ou seja, a IA faz parte do planejamento, do briefing, da inspiração é em cima disso que a criatividade dos nossos profissionais começa a trabalhar.
O cliente pode ele mesmo usar a IA para criar esses nomes, mas entendo que ele confia na experiência da agência, no bom senso, bom gosto e talento, na consultoria envolvida em todo o processo.
Em um outro projeto, o fornecedor está usando Inteligência Artificial para modular um cenário 3D que fará parte de um filme institucional. Foram inúmeras idas e vindas, mas inúmeras mesmo, com uma dezena de profissionais gabaritados envolvidos, para chegar ao resultado final. Sem essas pessoas ajudando, colocando seus pontos de vista, somando seus esforços, nenhuma Inteligência Artificial teria chegado ao maravilhoso resultado que chegamos.
Mais uma vez o papel consultivo de profissionais competentes fez a diferença, usando o novo denominador comum que é a IA. Foi mais rápido, foi mais fácil, mas o talento das pessoas, a criatividade impossível de simular, elevou a qualidade da entrega.
Assim como os softwares de edição, as câmeras digitais e a internet, a IA não é um fim, ela é um meio. Para quem sabe usá-la, um acelerador de talentos, um gerador de valor, um facilitador de tarefas. Se a pessoa só sabia recortar e colar, provavelmente ela mudou de ramo quando o Corel chegou. Se o único diferencial do fotógrafo era ter dinheiro pra comprar o equipamento, ele deve ter aberto um restaurante ou uma pousada na praia e passou a usar as câmeras digitais para registrar os momentos com sua família. Se tudo o que a agência oferecia era criatividade pela criatividade, uma epifania da ideia sem embasamento mercadológico, provavelmente ela foi engolida pelo digital.
Mas quem tem uma visão global do seu trabalho e do mercado usa essas transformações para se diferenciar. Os bons criativos viram em Corel, Photoshop, Illustrator, After Effects, InDesign um trampolim para suas ideias. Muitos limites técnicos e temporais só puderam ser superados com essa evolução da computação. Para o fotógrafo que tem um olhar único, um senso estético diferenciado, as câmeras digitais trouxeram agilidade, segurança e possibilidade de realizar muitos mais trabalhos por dia e entregar muito mais imagens, e valor, para seus clientes. As agências que entenderam a mudança na medição de resultados e no alcance trazidos pelo digital e somaram isso à criatividade embasada, com visão mercadológica, conseguiram conquistar ainda mais a confiança de seus clientes.
Eu acredito na criatividade natural usando a Inteligência Artificial para gerar mais valor. Todo mundo tem acesso a pincel, mas nem todos são capazes de criar obras de arte.
*Thales Zeviani – Sócio-fundador e head of inspiration na Ideatore Americas.